O direito penal suplica por crítica

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Por *Élio Ricardo e Patrick Assunção Santiago

Segurança Pública

14 de outubro de 2021 às 09h44

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Recentemente soubemos do caso de uma mãe de 5 filhos que, diante da fome, do desemprego e do desamparo público ante a pandemia, não viu outra alternativa senão subtrair uma coca-cola, um suco em pó e um macarrão instantâneo, para dar de comer aos seus filhos famintos. Os alimentos subtraídos custam, ao todo, o valor de R$21,69.

Ignorando o fato e forçando uma falsa ingenuidade à título de análise, cremos na esperança de que deve haver alguma lógica por detrás dessa draconiana condenação. Afinal, nem mesmo pela econometria do processo a condenação se justifica. Sabemos por dados oficiais do Ministério da Justiça que do começo ao fim, do inquérito ao transitado em julgado de uma sentença penal condenatória, um processo criminal custa em média 40 mil reais. Isso sem falar que um detento em reclusão custa em média R$ 2.300,00 mensais ao sistema prisional. Os custos à coisa pública tornam a manutenção da condenação uma verdadeira obscenidade.

Ironicamente, o Desembargador que decidiu pela condenação dessa mulher chama-se ‘’farto’’. Farto Salles, que parece ter ignorado o fato de que a mulher, que é mãe de 5, estava faminta e via seus filhos passando fome. Não haveria de ter sido ela a vítima em primeira análise? Melhor dizendo: Se o Estado cria as condições criminogênicas do delito, como poderia esse mesmo Estado aplicar censurabilidade penal?

A pergunta que fica, em verdade, é: será que o Desembargador Farto sabe para onde essa mulher faminta vai jogada após ser condenada? Será que o Farto conhece as consequências de uma sentença tão insensível? A pergunta é pertinente, pois em termos sistêmicos, o sistema prisional brasileiro é o maior crime contra a humanidade em curso no país. Uma cadeia brasileira pouco se difere dos campos de concentração nazistas do século passado. Basta visitar um presídio para constatar a situação zoológica a que seres humanos são submetidos.

Não é no mínimo estranho que o maior crime contra a humanidade em curso no país seja gerido e implementado por gente com formação jurídica? É para isso que serve o Direito? O que precisamos pensar é um Direito crítico. Como é possível que essa atrocidade não cause revolta em pessoas que, em tese, deveriam possuir rígida formação humanística?

Visitando um presídio conseguimos identificar padrões que são rigidamente seguidos. Ali está um tipo muito específico de gente. Gente de uma classe social muito específica, de uma cor específica, de um nível de escolaridade específico e por delitos específicos. Toda essa especificidade torna a seletividade do sistema prisional inquestionável.

De acordo com uma pesquisa da FGV em parceria com o Ministério da Justiça atualmente existem cerca de 1700 tipos penais no nosso ordenamento jurídico. Contudo, aproximadamente 86% de toda a população carcerária do Brasil está presa por somente 5 crimes: furto, roubo, trafico de drogas, porte ilegal de armas e homicídio. Dentro de um universo de quase 1700 crimes possíveis, somente 5 delitos compõem 86% do sistema prisional.

O fato é que a maioria desses crimes são ignorados e socialmente aceitos como irrelevantes. Diariamente nós cometemos infrações penais e sequer nos damos conta disso. O discurso da ‘’impunidade’’ é, como o próprio conceito demonstra, apenas um discurso. Se realmente tivéssemos levando o Direito Penal à risca sob a política da ‘tolerância zero’, a vida em sociedade seria impossível.

A pena como resposta ao delito é a solução mais incomum. Quantos de nós realmente apresentamos boletim de ocorrência ao sermos vítima de furto de objetos pessoais? melhor: quantos de nós já fomos submetidos a um processo criminal pelo furto (ainda que inconsciente) do material do escritório ou material escolar alheio? Ou por injúria ou difamação ao juiz do jogo de futebol? Ou por pirataria daquele filme visto em site pirata na internet? Ou por contrabando da capinha de celular comprada no camelô? Ou por ter pisado na grama quando havia aviso para que não pisasse? Ou por criarmos passarinhos sem a devida autorização? Ou por outra conduta tida como criminosa nessa infinidade de delitos que existem no sistema penal brasileiro? O fato é: se levassemos o Direito Penal às últimas consequências, a vida em sociedade seria impossível.

O que precisamos compreender são os processos de criminalização desse sistema. O que sabemos é que a pena é a resposta mais incomum para o crime e que, pelo mesmo fato, certas pessoas são criminalizadas e outras não. O que importa é compreendermos o motivo dessa seletividade.

Por que a polícia só prende certas pessoas por certos crimes? Por que os promotores só denunciam certas pessoas por certos crimes? E por que os juízes só condenam certas pessoas por certos crimes? Essa é a questão a ser pensada. A seletividade do sistema penal não é um “erro”, mas uma condição essencial para o funcionamento do próprio sistema. A seletividade é o único dado verdadeiramente concreto que podemos extrair da política de justiça criminal brasileira.

Portanto, frente a essa seletividade e frente às condições criminogênicas criadas pelo próprio Estado, o mínimo exigível é que possamos usar critérios de compensação de direção da seletividade político-criminal para diminuir o juízo de censura contra pessoas que são portadoras de vulnerabilidades específicas que determinam a criminalização secundária, de modo que na ausência de condições básicas mínimas para a sobrevivência, na ausência da plena educação, na ausência do pleno emprego… enfim, na ausência do mínimo exigível à dignidade humana, como pode o Estado censurar condutas desviantes cujo desvio consiste na própria sobrevivência?

O Direito brasileiro é bom. O sistema de justiça que o corrompe - e esse é precisamente o motivo da nossa miséria. E se não compreendermos a dimensão política desse tipo de condenação, pouco resta ao Direito.

Os riscos da má-técnica do Direito à sociedade são claros: todos estamos sujeitos a violência do Estado, e neste ponto certo esteve G. K. Chesterton ao proferir a profética frase: ‘’Estamos todos num mesmo barco, em mar tempestuoso, e devemos uns aos outros uma terrível lealdade’’.
 

*Élio Ricardo é Advogado Criminalista, Professor, Especialista em Ciências Criminais e Doutorando em Direito Penal.

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