O que Ulisses tem a ensinar para a advocacia...

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Élio Ricardo e David Daltro

Segurança Pública

25 de outubro de 2021 às 17h34

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Quais semelhanças guardam a “nova” advocacia a uma das principais obras épicas do cânone ocidental? Por certo que estamos a falar da Odisseia, de Homero.

Antes, contudo, até mesmo pela extensão do clássico literário, nos convém reduzirmos a análise a uma ilustre e singela passagem (ainda que tantas outras guardem similar importância) cuja narrativa preocupa-se em descrever o retorno de Odisseu (Ulisses) a Ítaca, sua terra natal, após passar anos na guerra de Troia.

Mas o que teria de tão especial tal passagem? Seguramente, acima de qualquer dúvida, a partir de seu descortinamento, a possibilidade de fazer-nos compreender nossa natureza e nossa cultura, crucial ao momento em que vivemos.

Para quem ainda não conhece o mito, nele é narrado que durante o seu percurso Ulisses iria ao encontro de algumas sereias, à época verdadeiras personificações de lindas e sedutoras mulheres que viviam no mar a solfejar cânticos e, por conseguinte, seduzir aqueles que os ouvissem, conduzindo-os à inevitável transformação em animais mansos, pacíficos, que viveriam e, por corolário, seguiriam em rebanho, sem qualquer tipo de indagação sobre a vida.

E qual o dilema de Ulisses? Qual o nosso? O mesmo, oras!! Ultrapassar esses “cânticos” que se apresentam sem deixar que nos seduzam.

Ulisses, como nos ensina o mito, utilizou-se de sagaz astúcia e perspicácia (bom conselho para tudo enfrentar), ordenando a seus marinheiros que tapassem seus ouvidos com cera a fim de que não pudessem escutar tais cânticos. Ulisses, contudo, assim não o fez, excepcionou-se, no que tange a cerrar os ouvidos com cera. Ele queria escutá-los.

Com astúcia, contudo, como já dito, a fim de que não padecesse à sedução maligna, ordenou que lhe amarrassem à embarcação, donde poderia ouvir os belos cantos das sereias sem, contudo, entregar-se aos seus “encantos”. E assim foi feito!! (Esta passagem nos revela algo bastante característico acerca de como devemos enxergar/enfrentar nossa realidade, frise-se, dilema presente desde os gregos).

Como nos ensina Ulisses, que abriu mão de toda sua racionalidade para que pudesse usufruir do gozo estético dos cânticos, no enfrentamento de nossos dilemas devemos buscar o equilíbrio das ações. A grande beleza deste mito talvez seja exatamente o equilíbrio encontrado no domínio das esferas do instinto e da racionalidade.

Podemos, assim, refletir: Qual a relação do mito retromencionado com o mister, sacerdotal, da advocacia? É que nos tempos atuais, sem nenhuma predileção, registre-se, aos preciosismos, formalismos exacerbados ou comportamentos litúrgicos, vem se solidificando – país afora – uma cultura de produção de “conteúdos” midiáticos que desservem a toda uma classe, dentre os quais estão aqueles que pregam o exibicionismo desarrazoado de bens, e aqueles que apostam no entretenimento, sem filtros, nas mídias sociais.

Parece – ou pelo menos aparenta-se – que houve a introdução, a fórceps, aos que agora se achegam à profissão, da falsa percepção de que a confecção de tais conteúdos é imprescindível para inserção do indivíduo no mercado profissional ou que são elementos indispensáveis para o termômetro social que avalia a qualidade do seu serviço. Ledo engano.

Sem dúvida, as mídias sociais são, hoje, grandes veículos de comunicação/projeção profissional – o que não é ruim. Todavia, a advocacia reclama seriedade, serenidade e, sobretudo, grande e comprovada competência! Não à toa que o constituinte previu que àqueles “chamados para socorrer” – advocatus – são essenciais para a administração da justiça.

Importante restar consignado neste pequeno ensaio que a reflexão aqui contida jamais terá o condão de cercear a produção de conteúdos digitais, de retirar a condição humana que recai sobre toda e qualquer profissão, de tolher a ludicidade da produção e disseminação de conteúdos de qualidade. Ao revés, tenta-se, aqui, provocar uma reflexão pessoal ao leitor, primordialmente ao leitor jovem advogado(a), para que não caiam na sedução do canto da sereia ou – em expressão alcunhada pelo Professor Caio Paiva – na tão quanto perigosa “armadilha do ridículo”.

Será, pois, que uma grande empresa contratará os seus serviços apenas pelos “TikToks” que você produz?; Será, pois, que um(a) cliente te confiará o patrocínio pelo carro, relógio ou bolsa que você possui?; Será, pois, que um(a) cliente reservado buscará o seu escritório se você vive a postar documentos relacionados a processos dos seus clientes? Com máximo respeito aos que divergem, mas parece que não.

Não esqueçam, portanto, da briosa lição de Confúcio, que ecoa até os dias atuais: “Se queres prever o futuro, estuda o passado.”. Mirem os grandes nomes das suas áreas de atuação e estudem o caminho trilhado por eles, ontem e hoje. Não no sentido de reproduzir o feito, mas no sentido de inspirar a construção do teu caminho, que é unipessoal e intransferível.

Em suma, como a vida é correr riscos, deixe-se seduzir. Mas saiba, para que não siga em rebanho, “separar o joio do trigo”, porém este já é um outro assunto...

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